Tendo em vista que ocorrem eleições desde que a primeira vila portuguesa foi fundada na América, em 1532, constatamos que as mulheres exercem direitos políticos há muito pouco tempo. Assim, como explicar o cenário atual em que as mulheres ocupam importantes cargos eletivos e representam maioria no eleitorado brasileiro?
Essa pergunta leva a outras: quando esses direitos foram estendidos às mulheres? O que se discutia nos embates pelo voto feminino? Por que não se lutava por esse direito em momentos anteriores? Para responder a essas perguntas, é preciso investigar as diferentes formas pelas quais o exercício do voto foi vivenciado por homens e mulheres nestes quase 500 anos de história eleitoral.
Voto familiar
A independência do Brasil, em 1822, iniciou um ciclo de mudanças na legislação eleitoral. Tivemos voto distrital, voto em listas completas e limitadas; voto direto (eleições locais) e voto indireto (eleições gerais). Apesar dessas mudanças, a lógica do sistema eleitoral não sofreu rupturas significativas.
O eleitorado continuava a ser fixado a partir do número de fogos dos municípios, ou seja, a quantidade de eleitores dependia das unidades familiares. O atrelamento do contingente eleitoral ao número de famílias refletia a característica de uma época marcada fortemente pelos laços de parentesco e dependência. Nesse contexto, o eleitor era uma pessoa a exercer determinada função dentro de um corpo social, seja a família, seja a própria sociedade.
Assim, o sufrágio não era dever e direito de todos; era privilégio de determinado personagem social, era prerrogativa da cabeça política da família. Exatamente nisso consistia o voto familiar: o eleitor, no ato de votar, manifestava a vontade de toda a família. Não se concebia, à época, a necessidade de expressão individual da vontade, posto que o personagem-eleitor manifestava a vontade de todo o corpo familiar.
A lei qualificava esse personagem-eleitor como “homem bom”, termo que trazia consigo uma série de distinções sociais: idade, renda, estado civil, escolaridade e status social (livre-liberto-escravo). Essas distinções definiam as várias gradações do personagem-eleitor que já se revelavam tanto na Constituição do Império quanto nas normas que regeram as eleições para as Cortes de Lisboa.
E as mulheres? Nessa sociedade, a posição e o papel exercido pelas mulheres também era bastante determinado pela função que deveriam desempenhar na família, ou seja, a de mãe, esposa e filha. Em decorrência da definição rígida dos papéis, às mulheres, em regra, não era permitido estudar, trabalhar, tampouco exercer atividades políticas que eram de exclusiva responsabilidade dos chefes de família.
Pipocam contestações: o lugar da mulher
No Brasil, as discussões sobre o papel da mulher se intensificaram a partir do final do século XIX. O panorama mundial era outro: os estados nacionais começavam a se estabelecer, o individualismo político e filosófico vicejava. Em uma sociedade que passava a se ver formada por cidadãos, não por grupos, uma questão se colocou: por que excluir metade dos indivíduos do processo eleitoral?
Nesse sentido, uma contestação ocorreu ainda nos anos 80 do século XIX. A Dra. Isabel de Matto Dellom, invocando o direito de alistamento dos bacharéis, requereu sua qualificação como eleitora. Nessa época, surgiram jornais e publicações nas quais as mulheres reivindicaram maior participação política. Por exemplo, Josefina Álvares de Azevedo, em 1890, escreveu uma peça chamada O Voto Feminino. Essas e outras mulheres começaram a questionar a interdição do voto à mulher.
Contudo, não só mulheres participaram da luta pelo sufrágio feminino. Intelectuais, políticos e religiosos atuaram no movimento que desembocou no direito do voto à mulher em 1932.
Alguns clérigos e organizações religiosas (como a Federação Pernambucana para o Progresso Feminino, a Liga Eleitoral Católica e a Cruzada de Educadoras Católicas) se interessavam pelo voto da mulher, na medida em que as viam como representantes de valores religiosos e morais que poderiam ajudar a reformar o panorama político.
No cenário legislativo, alguns parlamentares defenderam o voto feminino e emendas foram propostas. Apesar disso, a primeira Constituição Republicana se omitiu sobre os direitos políticos da mulher, possibilitando que os estados tratassem da matéria. Assim, a “Constituição Política” da cidade de Santos (1894) garantiu o voto à mulher, ainda que tenha sido anulada logo em seguida. A omissão constitucional também ensejou o alistamento de Celina Guimarães Viana e de outras mulheres no Rio Grande do Norte, em 1927. Elas votaram na eleição de 1928, mas seus votos foram invalidados pela Comissão de Verificação de Poderes.
Dessa forma, a conquista do voto feminino, em 1932, foi resultado da atuação de feministas, setores do clero católico, intelectuais e políticos. Essa demanda indicava uma nova percepção social sobre o eleitor, que passou a ser identificado como um indivíduo cuja expressão da vontade deve ser assegurada.
O voto individual e a Justiça Eleitoral
A criação da Justiça Eleitoral, em 1932, fez parte do projeto de modernização imposto ao país pelo movimento de 1930. Sem dúvida, a inserção do Brasil no rol dos países civilizados passava pela confiabilidade do sistema eleitoral. Para atingir esse objetivo, além de um processo eleitoral transparente, era fundamental transformar os próprios eleitores.
Antes, no Império e mesmo na Republica Velha, o eleitor não era um indivíduo, era uma pessoa integrante de um corpo social que, na maioria das vezes, incluía laços de parentesco e relações de dependência. Tais relações geravam práticas eleitorais que passaram, então, a ser duramente atacadas e, por isso, ficaram conhecidas charges e críticas ao chamado “voto de cabresto”. Sendo assim, qualquer experiência eleitoral que não considerasse o eleitor como um indivíduo passou a ser classificada como crime.
Nesse contexto, o voto feminino pode ser entendido na esteira do processo de individualização do eleitor. Esse processo consistiu na alteração de uma lógica grupal para uma lógica individual. Vimos anteriormente que os interesses da família eram expressos pela vontade de apenas um eleitor, o “homem bom”. Posteriormente, a vontade passou a ser expressão exclusiva do indivíduo, não cabendo interferências de qualquer ordem na sua formação e manifestação. Por isso o grande esforço, na década de 1930, em assegurar o sigilo do voto (criação das cabines indevassáveis), o voto individual (inclusão das mulheres) e a soberania da vontade eleitoral (imparcialidade da Justiça Eleitoral na organização, apuração e proclamação dos eleitos).
A participação política das mulheres não se restringe, entretanto, à participação eleitoral (direito de votar e de ser votada). Ela diz respeito, sobretudo, a uma atuação política ampla, que abarca todos os âmbitos da vida em sociedade. No tópico a seguir, apresentamos alguns exemplos da atuação política das mulheres nos últimos anos.
Participação feminina para além do voto
Durante as décadas de 1960 e 1970, outras pautas foram incorporadas à luta das mulheres: liberdade sexual e dos costumes, inserção da mulher em mercados de trabalho tradicionalmente masculinos e divórcio. A atuação feminina na política foi ganhando cada vez mais expressão, a exemplo da participação de algumas delas nos movimentos de contestação ao Regime Militar, inclusive na luta armada.
Os avanços seguiram com a criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher, em 1985, e, mais recentemente, com a Lei Maria da Penha, que, em 2006, criou mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher.
Em questões acadêmicas, no ano de 2004, o número de mulheres que obtiveram título de doutorado superou o número de homens que obtiveram esse título.
Atualmente, a bancada feminina na Câmara dos Deputados se estabelece em torno de pouco menos de 10%, em comparação com o número de deputados homens. Com relação à candidatura para cargos políticos, a Lei nº 12.034/2009 define a cota mínima de 30% e a máxima de 70% para cada um dos sexos.
A comissão de reforma política do Senado Federal aprovou, em abril de 2011, a alteração dessa cota. Se as alterações da comissão virarem lei, as eleições ocorrerão por meio do sistema de listas fechadas, que deverão ser compostas por homens e mulheres, alternadamente, garantindo-se um percentual de 50% para cada um dos gêneros.
Os parlamentares que atuam na comissão da reforma política reconhecem a necessidade de criação de instrumentos que favoreçam a maior presença feminina nas disputas por cargos políticos. A falta desses mecanismos não impediu, no entanto, a eleição da primeira presidente do país em 2010, registro da ampla possibilidade de realização dos indivíduos na sociedade, para além das diferenças de gênero.
Autores: Ane Ferrari Ramos Cajado e Thiago Dornelles Cardoso
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